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BARREIRA DE SOMBRA

Desde 13.06.1987 ao serviço da Festa Brava

BARREIRA DE SOMBRA

Desde 13.06.1987 ao serviço da Festa Brava

O RELACIONAMENTO HOMEM/TOIRO VISTO POR FRANCIS WOLFF

15.02.21 | António Lúcio / Barreira de Sombra

Quando se continuam a debater questõe sobre a festa brava, as corridas de toiros e o próprio toiro em si, com todas as suas condicionantes; quando se fala de ética nas relações entre homens e animais e questão das corridas é central, importa, mais do que esgrimir argugmentos muitas das vezes bacocos e sem sentido, colocar à consideração de todos quantos nos visitam no blogue, um conjunto de textos onde a temática é abordada sob o ponto de vista de uma das disciplinas mais envolventes: a da filosofia. Já aqui vos demos a conhecer, basicamente, o livro de Francisc Wolff intitulado “Filosofia de las Corridas de Toros” e hoje propomo-vos o texto que se segue e que é parte do referido livro.

“DAS RELAÇÕES DOS HOMENS COM OS TOIROS E DOS DEVERES QUE DELES SE DESPRENDEM” – por Francis Wolff (1)

 

“Tal é a secreta ambiguidade da personalidade do toiro na corrida (á vez, pior amigo e melhor inimigo do homem) que se revela a duplo sentido da ética desta (por uma parte luta trágica até à morte com o antagonista; por outra, duelo lúdico de igual para igual com o contricante) e que se revelam os dois sentidos entre os quais balança o conceito de bravura: entre a vida sobrehumana da valentia e o instinto bestival do selvagismo brutal.

 

É este o sentido que a lide respeita o que o toiro é para nós. Não deve ser tratado nem como um animal doméstico, como fez o homem para servir os seus fins domésticos, caso em que não deveria ser lidado, nem como um animal selvagem, caso em que poderia perfeitamente ser sacrificado, antes deve ser tratado como um animal bravo, ou seja, conforme ao que é para o homem que  fez ser assim precisamente, seu melhor seu mais próximo inimigo, seu eterno adversário. O toiro é bravo para com o homem, porque o homem quis que o fosse. A bravura é na natureza do toiro o que a sua aculturação pelo homem fez dele. Assim, pois, existem muitas relações de reciprocidade travadas com o toiro bravo e devemos respeitá-las: deixá-lo viver em paz, guardado por nós longe de nós, mantido perto de nós e com a maior desconfiança de nós.

 

Mas para respeitar o princípio do ajuste, não basta tratar o animal de acordo com as relações de reciprocidade que num momento se estabeleceram com a espécie, há também que respeitar o tipo de afecto que se solta destas relações. Pois bem, porque está destinado à lide e morte, o toiro bravo é tratado pelo homem, durante a sua vida, durante a sua lide e depois da sua morte, de uma forma acorde com a condição devida ao adversário. Por encarnar o «vivo» por excelência, já que vive com «vista à morte», é digno de respeito: a sua vida deve ter sido livre, a sua morte deve ser digna. Está ritualizada conforme o avanço inexorável de uma cerimónia, que obedece ao desenvolvimento inexorável dos três tércios da lide e a sua execução é frontal, franca e rápida. A dignidade intrínseca do ser-toiro manifesta-se tanto nas formulações quanto nas suas práticas.

 

As formulações que rodeiam todas as formas de tauromaquia exaltam sistematicamente o toiro. (..)

 

(...) Mas se atendermos às práticas das corridas, o respeito devido ao toiro está inscrito nos quatro momentos da sua gesta nelas: antes da lide, durante a lide, no momento da sua morte, depois da sua morte. Antes da lide, o toiro deve estar «puro» (limpo). Seguramente esta ideia tem um fundamento técnico: o toiro nunca deve ter sido afrontado, sob pena de se ter tornado inabordável, já que em qualquer momento da sua vida ou da sua lide, aprende progressivamente a desbaratar os enganos e recorda-se de tudo. (...) Mas o toiro chega «puro» à lide noutro sentido. Não deve ter sido manipulado nem debilitado. (...) No momento em que entra na praça, o toiro está intacto em todos os sentidos deste termo. É como se, precisamente porque está destinado à morte, que o animal deve gozar a vida o mais puro possível.

 

Este respeito que se tem pelo toiro manifesta-se no comportamento que o toureiro deve ter para com ele durante a lide (...). No  momento da morte, esse respeito que é devido ao toiro adquire um carácter quase sagrado. A corrida não se baseia na morte do animal, como no matadouro, antes na pureza da execução da estocada, que se deve administrar do modo mais leal possível: de frente, «deixando-se ver» (para permitir ao adversário investir e colher a sua presa na passada) e em pleno centro da sorte, metendo-se entre os pitons. O homem corre assim o máximo risco, já que perde de vista por um instante os pitons do toiro. Esse corpo a corpo em que os dois corpos se procuram, esse cara a cara em que se enfrentam as duas armas, o piton e a espada, chama-se «sorte de matar». Poder-se-ía chamá-lo também de «dom da morte».

 

Por último, depois da morte, com frequência se aclamam os restos mortais do toiro combativo.Por vezes inclusivé se lhe concede a volta à arena, a passo lento das mulas, e a  multidão levanta-se  e descobre-se à sua passagem. (...) A sua vida, o seu gesto, a sua morte, têm um sentido. Têm um grande valor ético. Assim, pois, os toiros de lide são tratados antes, durante e depois da sua lide conforme ao que são para o homem: com a consideração que se deve ao adversário, com a admiração que se deve ao bravo. (...)”

 

 

(1) in Filosofia de las corridas de toros, pp 57 a 64, Francisc Wolff, Edicions Bellterra, Barcelona 2008