LITERATURA TAURINA - «FESTA BRAVA» - D. BERNARDO DA COSTA (MESQUITELLA)
Este é um livro editado em 1932 em Lisboa pelo próprio autor, com uma pintura da autoria de Simão da Veiga na capa e onde se aborda a temporada tauromáquica de 1931 pela pena do reputado crítico tauromáquico, a par de dois capítulos inéditos e intitulados «As Cortesias» e «Fugir», este último de inegável interesse pela abordagem mordaz que faz da tourada à portuguesa, aliás, severamente criticada de princípio a fim da obra.
Falamos de 1931, ou seja, há quase 80 anos atrás. O texto que passamos a transcrever é extraordinário.
«Fugir...
Como tive ocasião de lembrar, corrida de toiros é uma coisa e tourada é outra.
Insisto novamente neste ponto, porque, sendo tão partidário de uma como inimigo da outra, não posso tolerar que se confundam os termos.
Se é verdade que na sua origem pretendiam definir a mesma coisa, não há dúvida também de que o andar dos tempos encarregou-se de dar a estas duas expressões significados totalmente distintos e quási opostos.
Corrida de toiros é aquela festa varonil e galharda, maravilhosa de vida e de côr, de sangue e de tragédia, que brilha nos redondéis da Espanha, da França, das Repúblicas Sul-Americanas e de outros provos igualmente «bárbaros» e que brilhou pela última vez em Portugal no ano de 1927, naquela tarde saudosa de Vila Franca de Xira. Tourada é a pantomina que se faz com toiros embolados, num paiz civilizadíssimo como o nosso.
Fugindo ao lugar-comum duma explicação sentimental, da mesma forma não vou enfastiar-vos com a análise demorada duma coisa e doutra: sem remontar às causas e preocupando-me apenas com os seus efeitos, vou apenas dizer o que em síntese, na minha opinião pessoal, distingue, sob o ponto de vista técnico, uma corrida de toiros de uma tourada.
É simples: Diz-se em duas palavras: na corrida de toiros, toureia-se; na tourada – foge-se.
O que tecnicamente caracteriza a tourada é, com efeito, a fuga. Enquanto que na chamada corrida à espanhola a primeira coisa que se trata de fazer logo que o toiro sai é «cortar-lhe os pés», quere dizer, reduzir-lhe a velocidade, «pará-lo» mesmo, para que a lide seja levada com consciência e com a maior igualdade possível, permitindo-se, simultâneamente, que o toureiro veja que espécie de toiro tem pela frente e que êste se aperceba, por sua vez, de quem o desafia e combate, em Portugal toureia-se de preferência a «toiro levantado», isto é, enquanto êste conserva as possibilidades de uma velocidade inconsciente e desnorteada e leva-se a lide, por conseguinte, a todo o galope, ou, pelo menos, a correr. Ora, numa contenda em que os dois adversários passam o tempo a correr, é de supôr que um dêles foge. E partindo do princípio que foge só um e que o outro persegue, é natural que êsse um seja o homem. Logo, o que o toureiro faz com mais frequência na nossa tourada é – fugir.
Vejamos se se demonstra. Estudemos rapidamente os três comparsas da festa: o cavaleiro, o bandarilheiro e o moço de forcado.
No toureio a cavalo – que os nossos, aliás. Praticam com uma mestria inexcedível (e era o que faltava que assim não fôsse!) todo o ferro que não é metido entrando o cavaleiro de caras e rematando ao estribo, é um ferro a fugir (e são frequentes). Veja-se a «garupa» que não é outra coisa, e essa sorte do «sesgo» a cavalo ou ainda a de «cambiar terrenos», que se rematam forçosamente «fora de cacho» - que é como quem diz a fugir.
Vejamos agora o bandarilheiro nos seus vários aspectos: como auxiliar da lide, como colocador de bandarilhas e ainda, em casos excepcionais, com o muletero.
Como peão de brega a sua acção é nula. É uma calamidade! Com raríssimas excepções – essas mesmo duvidosas – aqui ninguém brega: quem se brega a si próprio é o toiro. (...)”
Este é um excerto do livro e dos magníficos (e por vezes corrosivos) textos que o compõem.