DR PAULO PEREIRA NA TERTÚLIA DO CASTELO DE SÃO JORGE SOBRE AS ESPERAS DE TOIROS EM LISBOA
Com a devida vénia e autorização do autor, publicamos de seguida o brilhante texto que serviu de base à tertúlia no Castelo de São Jorge, este sábado, sobre as "Esperas de Toiros:
*******************************************************************
Nesse domingo de Agosto
Foi linda a espera de gado
Desde manhã ao sol-posto
Houve alma, toiros e fado
Não havia traquitana,
Que não estivesse enfeitada
E via-se engalanada
Toda a praça de Santana.
Gente alegra, gente lhana
Trajando com raro gosto
Fazia bem o seu posto
De toureiros e fadistas.
Que lindo rancho de artistas
Nesse domingo de Agosto.
Descantes e guitarradas
Se ouviam de manhãzinha
Gente a ver se o gado vinha,
Os campinos e as montadas.
Fizeram-se desgarradas
Com encanto e com agrado
E era já manhã, sol nado,
Quando o gado entrou na praça.
Que encantamento, que graça.
Foi linda a espera de gado.
Toirada, viva, emoção,
Encantamento e prazer
Muitas palmas, sensação
Lide, nobreza a valer.
E era tanta a sedução
Do povo bem predisposto,
Que se via em cada rosto
A alegria manifesta.
Foi um domingo de festa
Desde manhã ao sol posto.
E à tarde encheram-se as hortas
Das mesmas gentes bizarras
E só se ouviam guitarras
Nas tascas fora de portas.
Só alta noite, horas mortas,
Após o ter-se vibrado,
Saiu o povo encantado
Ébrio de imensa alegria.
Só porque naquele dia
Houve alma, toiros e fado.
1. Enquadramento político-social
Domingo de Agosto….fado interpretado por Alfredo Marceneiro e por Rodrigo, entre outros, é um poema de Carlos Conde que constitui um interessante retrato de uma parcela da vida boémia lisboeta da segunda metade do século XIX.
O século XIX português inicia-se politicamente com as invasões francesas (1807-1810). Na eminência da entrada do exército napoleónico em Lisboa, comandado pelo General Junot, a família real foge para o Brasil, já sob as vistas, mas não ao alcance do tiro das tropas francesas. A 13 de Dezembro de1807, abandeira portuguesa é substituída pela bandeira francesa neste mesmo local onde nos encontramos.
Assinada a paz de Paris (1814), a Portugal mais não resta que o orgulho do esforço heróico posto na defesa do seu solo. Os ingleses, que nos representaram no Congresso de Viena, em 1815, reunido a pedido das potências europeias, não obtiveram para Portugal qualquer reparação de guerra.
No final das invasões francesas, Portugal é, politicamente, um protectorado britânico, onde uma Junta Governativa nomeada pelo Príncipe Regente D. João VI é profundamente influenciada pelo General inglês Bredsford o qual, praticamente, exerce uma ditadura pessoal no país através daquele órgão.
Longe de iniciar um período de paz, Portugal vê-se, por vários anos, mergulhado numa grande instabilidade politica, com a ocorrência de várias conspirações, uma guerra civil (1828-1834) entre Absolutistas, partidários de D. Miguel e Liberais, partidários de D. Pedro IV, ambos filhos de D. João VI que morrera sem deixar designado o herdeiro do trono, sequela aliás da independência do Brasil, declarada por D. Pedro, aclamado imperador com o título de D. Pedro I Imperador do Brasil. Acabada a Guerra Civil, eclodem ainda várias revoluções.
Só perto do final do reinado de D. Maria II (f, 1853), com a Regeneração (1851) vai o país finalmente entrar num período de paz e desenvolvimento conhecido pelo Fontismo e também por Regeneração. São quatro décadas que abarcam os reinados de D. Pedro V e D. Luis I e que duram até à crise do Ultimatum Inglês em 1890, já no reinado de D. Carlos I.
Mas voltemos atrás, a D. Miguel, o Absolutista. Foi um grande aficionado aos toiros. Ainda hoje é conhecido também como o Rei-Toureiro. À sua iniciativa se deve a construção da Praça de Toiros do campo de Santana, que Carlos Conde refere no fado com que iniciámos esta tertúlia. Inaugurada a 3 de Julho de 1831, foi demolida em 1891 e por ela passaram as grandes figuras do toureio de Portugal e de Espanha. A Praça do campo de Santana é inaugurada durante a Guerra Civil que opôs Absolutistas e Liberais.
As esperas de toiros consistiam no acompanhamento dos toiros que iam ser lidados, desde o ponto de concentração da manada, às portas de Lisboa, até à praça do Campo de Santana, bem no centro da cidade. Constituía um importante divertimento popular, verdadeiramente interclassista. As referências à participação do clero são escassas. Contudo, António Roduvalho Duro, por pseudónimo “Zé Jaleco”, refere no seu livro História do Toureio em Portugal, publicado em 1907, o “gordo Padre Matheus” como um dos assíduos frequentadores das esperas. Muito provavelmente, o papel dos Padres estará mais relacionado com a administração da extrema-unção a algum incauto, acidentado durante a espera e que, por via de um previsível “passamento”, necessitasse de cuidados espirituais adequados. O certo é que a interacção nobreza-povo era muito mais evidente.
Fidalgos, cavaleiros, boleeiros, camponeses operários, prostitutas e fadistas convergiam para o ponto de encontro com a manada, às portas de Lisboa, nas Marnotas, no concelho de Loures, onde os animais descansavam. De permeio ficavam as hortas de Carriche, do Campo Grande, os retiros com petiscos e descantes, as grandes correrias e um sem número de pequenos e grandes “faits-divers” que estão descritos por vários autores, com os mais modernos a copiarem mais ou menos “ipsis verbis”, o que os seus pares do inicio do século XX nos deixaram escrito. Aliás esse é, também o meu caso.
João Machado Pais, num artigo publicado em 1983, na revista Análise Social, intitulado “As prostitutas na boémia dos inícios do século XX, escreve:
“As esperas de toiros constituíam motivo de franca confraternização entre boémios de várias castas, desde o Faia do Bairro Alto, até ao mais requintado aristocrata. Nas esperas de toiros, a cavalo ou de trem, ao som do fadinho chorado, lá víamos as ”cocotes chiques” ao lado da Severa, da Júlia Gorda ou da Joaquina dos Cordões”. Os “doidos Marialvas, integrados em grupos de desordeiros e beberrões, fadistas e vagabundos, alojavam-se por todas as locandas, desde o Arco do Cego até Loures, onde esperavam até alta madrugada pela largada dos toiros. Eram acompanhados pelas amantes e outras “mulheres de vida fácil”. Os próprios fidalgos trajavam à fadista. A integração era perfeita e as distinções super-orgânicas e culturais de “significado-normas-valores aparecem socialmente minimizadas”.
Machado Pais, que por sua vez cita o jornal O Boémio, de 5 de Fevereiro de 1910, aborda comportamentos e indumentárias, nestes termos:
“Aqui, um fadista de calça à boca-de-sino, cinta, jaqueta e chapéu desabado, tocando fados ou corridinho; ali um filho pródigo que andava dissipando a herança paterna; acolá um fidalgo pândego, amador da paródias das esperas, trajando igual ao fadista, com esporas nos sapatos com salto de prateleira.”
2. As esperas de toiros para o Campo de Santana
José Pedro do Carmo em “Touros, arte portuguesa”, editado em 1926 descreve a espera nos mesmos moldes que Rdouvalho Duro na obra já citada, pelo que tentamos aqui fundir as duas descrições:
A condução do gado bravo para o Campo de Santana tinha o seu início à terça-feira, quando os toiros levantavam das lezírias com destino a Frielas, onde descansavam até sexta-feira, á noite para, no Sábado pelas 5 da tarde, seguirem das Marnotas para o Campo Pequeno e aí permanecerem, junto ao Palácio Galveias até à uma hora da madrugada, sendo pontualíssima essa hora para alargada definitiva em direcção aquela praça. Pelas estradas até às Marnotas, encontravam-se os melhores batedores de Lisboa, conduzindo os aficionados. As mundanas mais em voga, envoltas nas suas mantilhas graciosas, de toilettes espaventosas, sorriso nos lábios e petulantemente recostadas nas caleches tiradas a parelhas com guizeiras, não faltavam à festa. Também apareciam damas elegantíssimas.
À cabeça do gado iam os cavaleiros mais destemidos e os campinos. Pelas 5 da tarde, os touros levantavam-se das pastagens para iniciarem o percurso até ao Campo Pequeno.
Enquanto o gado descansava no Campo Pequeno, regurgitavam de aficionados as casas de pasto desde Carriche até ao Arco do Cego, sendo as mais preferidas a Nova Cintra, Patusca, José dos Santos, Quebra Bilhas, Colete Encarnado, António da Joana, entre outros, onde as guitarradas se faziam ouvir nos descantes dessa época: Emília Midões, Cesária, Maria José Formiga, Borboleta, Maria do Carmo, Manuel Serrano, Patusquinho, António dos Fósforos, José Um, Calcinhas e outros. Peixe frito, salada e vinho dominavam as ementas.
De entre os números aficionados que nunca faltavam, às esperas destacavam-se o Conde de Vimioso, O marquês de Castelo Melhor, D. Caetano de Bragança, D. Alexandre de Vila Real, Avilezes, Galveias, Maniques, D. João de Menezes, Lobo da Silveira, D. Luiz do Rego, D. António de Portugal Carlos Relvas, Marques de Belas, D. José de Melo e Castro, Visconde da Graça, Vitorino Froes, Alfredo Marreca, Alfredo Tinoco.
Dado o sinal de partida à uma hora da madrugada de domingo, o curro punha-se em marcha. O cortejo era assim organizado: à frente e bem destacados, alguns soldados de cavalaria da Guarda Municipal; a seguir e de pampilho ao ombro, junto com os campinos, alguns cavaleiros dos mais destemidos, à cabeça da manada, com o cabresto-guia à frente e os restantes envolvendo os toiros e, na retaguarda, mais soldados de cavalaria, seguidos de muitos aficionados a cavalo e de uma aluvião interminável de trens guiados pelos grandes batedores: José Maria dos Anéis, Gradil, Leonardo, “O Preto”, Cambrainha, Pingalho, Ratinho, Zé Gordo, Carlos Bonito e outros.
No meio de uma nuvem de poeira, o espectáculo era surpreendente e aml se divisavam os vultos, ouvindo-se o barulho produzido pelas ferraduras arrancando faíscas nas pedras; os incitamentos dos campinos e cavaleiros, o tanger dos chocalhos, o tilintar das guizeiras e as pragas dos transeuntes. Era um furacão que passava, que mal dava tempo aqueles a quel aturdia, para saberem o que significava.
No largo de Santa Bárbara, a cavalaria da Guarda Municipal mandava parar a multidão, que a custo sustinha o ímpeto da carreira, aa fim de o gado ir unicamente acompanhado pelos campinos até entrar na praça. Chegado ali, permitia-se então que avançassem todas as carruagens, seguidas do povo e dos cavaleiros.
O itinerário é ainda hoje fácil de reconstituir, pois a toponímia desta parte da cidade, mais de um século volvido, mantém-se com poucas alterações: Arco do Cego, Calçada de Arroios, Largo de Santa Bárbara, Rua de Santa Bárbara, Paço da Rainha, Campo de Santana.
As corridas eram vertiginosas pela Rua de Santa Bárbara até ao Campo de Santana. Nessa batida louca e sem olhar a obstáculos nem recear desastres que tantas vezes sucederam, havia só um objectivo: Chegar primeiro á praça para ganhar a bandeirinha que se achava colocada na porta dos cavaleiros. Faziam-se apostas. O batedor que alcançava a referida bandeirinha podia contar com a gorjeta dos fregueses e assim adquiria a fama para fazer valer os seus serviços no futuro.
Gado tresmalhado era frequente e os acidentes também. Muitas vezes os toiros eram recuperados em plena baixa lisboeta e depois reencaminhados para o Campo de Santana.
3. O fim das esperas de touros
Com a demolição da praça de toiros do Campo de Santana, acabaram as esperas de toiros em Lisboa.
Muito embora ainda tivesse havido algumas esperas de toiros para corridas na nova praça do Campo Pequeno, inaugurada a 18 de Agosto de 1892, o certo é que as esperas jamais voltaram ao seu antigo esplendor e acabaram por se perder. Os toiros passaram a vir enjaulados de comboio até à estação de Entrecampos e, daí conduzidos para a praça, ainda e sempre nas jaulas.
O crescimento urbanístico de Lisboa envolveu a Praça de Toiros do Campo Pequeno, criando uma nova centralidade urbana. O progresso inviabilizou a tradição… Hoje em dia são transportados em camiões, em jaulas individuais, das pastagens até à praça…
Contudo, em Junho de 1972, numa iniciativa do jornalista e critico tauromáquico Leopoldo Nunes ao tempo vereador na Câmara Municipal de Lisboa, realizou-se uma entrada de touros pela Calçada de Carriche até ao campo Pequeno, numa ecocação das esperas do inicio do século. O resultado foi desastroso pois tresmalharam-se toiros e cabrestos, a situação ficou incontrolável…os toiros espalharam-se um pouco por toda a cidade, houve mortos e feridos e, desde então nunca mais tal tipo de iniciativas se realizou na capital portuguesa.
Mais siso teve Leitão de Barros em 1931 quando realizou o filme A Severa. Nesse filme há uma espera de toiros. No entanto, segundo Pepe Luis em Cartaz de Toiros, editado em 1950, os supostos toiros eram nada mais que cabrestos de cor preta…
Incluir o extracto do file A Severa com a espera de toiros.
Contudo, um pouco por todo o Ribatejo, de Vila Franca a Alcochete, da Chamusca ao Porto Alto, as esperas de toiros continuam vivas e são, como há mais de cem anos, um ponto de encontro e de são convívio entre gente de todos os estratos socioprofissionais.
Autor: Paulo Pereira