LITERATURA TAURINA - DO LIVRO «PORTUGAL – O FADO E AS TOIRADAS»
Na nossa literatura de cariz tauromáquico encontrei um livro que, pelo seu título, me despertou a máxima curiosidade. Quando o folheei na feira de antiguidades de Aveiro, não hesitei e decidi trazê-lo comigo. Sem pretenciosismos, o autor desdobra-se entre a tradição dos fados e das toiradas e, nestas, consegue dar uma imagem interessante ao leitor. Por isso não hesitei também em trazer-vos hoje estas páginas magníficas do livro bem como algumas fotos de inegável interesse, nomeadamente as que se referem ao toureio a cavalo. Atentem bem nas diferenças entre algumas dessas fotos (de figuras dos anos 50/60 do século passado) e no que vemos actualmente nas nossas arenas!...
O TOUREIO EM PORTUGAL
RESUMO HISTÓRICO
NOS princípios do século xvii, encontramos, na Peninsula Ibérica um toureio já perfeitamente estabelecido, embora apenas no que se refere à lide a cavalo, com rojão, consequência do aperfeiçoamento dos torneios do século xvi em que se alanceavam toiros, com bem menor sentido artístico mas obedecendo a regras e deveres, intimamente ligados às tradições gerais da cavalaria medieval.
Por então, existem já verdadeiros tratados desse toureio que, aperfeiçoando-se gradualmente, chega a atingir um período de verdadeira grandeza e brilhantismo. Para isso, muito contribuiu o facto de ter-se tornado diversão de fidalgos e ser a sua prática sintoma de virilidade e nobreza. Por esse motivo, quase todos os preceitos estabelecidos oebedeciam a preconceitos especiais de honra e cavalheirismo.
Só os nobres cavalgavam e assim iludiam as arremetidas dos touros, apenas com o auxílio dos chulos (a que hoje chamaríamos «peões de brega») que eram lacaios dos fidalgos toureiros e a quem se não permitia mais que servir o seu senhor durante as lides ou acorrer em seu auxílio, primeiro a corpo limpo, mais tarde usando enganos ou defesas — pequenos pedaços de pano, chapéus, etc.
Em 1669, Carlos II de Espanha morre sem descendência e o problema dinástico é resolvido pelo próprio testamento do monarca, que designa, para o trono de Espanha, o duque de Anjou, filho segundo do Delfim de França, que viria a ser Filipe V. De sensibilidade naturalmente diferente, logo mostrou o seu desacordo com os espectáculos tauromáquicos e tanto bastou para que os fidalgos, evitando desagradar ao soberano, deixassem de sair a terreiro para dominar e matar toiros.
O povo, a que os lacaios pertenciam, é que não sentiu a menor necessidade de agradar ao rei e dando largas ao seu entusiasmo pelo toureio, continuou praticando-o, tal corno vira aos grandes senhores. Surgem os primeiros profissionais e constroem-se, de madeira, as primeiras praças, que depressa se tornam insuficientes, dado o interesse com que o público acorre a elas. Por essa altura, principia a operar-se uma modificação profunda porque, faltando ao povo tempo e haveres para amestrar cavalos e sendo dada a maior liberdade de acção aos que a pé actuavam, essas circunstâncias acabaram por ir relegando para plano secundário o toureio equestre, à medida que se desenvolvia o que a pé já praticavam e tão do agrado público estava sendo que logo recebeu verdadeira legião de praticantes.
Ao voltar Filipe V ao trono, depois de uma abdicação a que teve de renunciar pela prematura morte do príncipe seu filho, regressaram os fidalgos às lides da arena, encontrando, porém, um ambiente francamente desfavorável, enraizadas como já estavam, no espírito popular, as novas formas do toureio e a modificação trazida à estrutura do espectáculo. Portugal os atraiu então e para cá vieram, seguindo o exemplo de outros, que se tinham estabelecido no nosso país, mal se definiu a animosidade do pouco aficcionado soberano. Com esses excelentes cultores estrangeiros a engrossar o número dos cavaleiros nacionais que, tão brilhantemente praticavam já a modalidade, cujos princípios estavam perfeitamente dentro dos moldes de bizarria e cavalheirismo dos fidalgos lusitanos — todos eles com um passado mais ou menos ligado a façanhas de cavalaria — estabeleceu-se, em Portugal, uma arte nova, perfeitamente independente e profundamente nacional: aquela que viria a chamar-se «Arte de Marialva».
Tornada desporto favorito de nobres, estes saíam para as lides, animados por uma afición de tal forma ligada e sujeita a preconceitos de honra que, sem olhar ao perigo que corriam, operavam prodígios de arte e verdadeiras loucuras de temeridade. Frequentes revezes furtaram ânimo a alguns que, amparados pêlos soberanos, sempre lastimosos dos vassalos perdidos, foram diminuindo as probabilidades de perigo, até quase totalmente as banirem das arenas, pois a abolição da morte do toiro em praça reduzia naturalmente os deveres dos lidadores. Abria-se desta forma caminho para o estabelecimento da embolação das hastes.
Os forcados vieram então até às praças, com a bizarra alegria dos seus trajes, dar a nota de valentia e emoção que as referidas modificações tinham diminuído.
Sem que os fidalgos totalmente abandonassem as arenas, em Portugal, tal como acontecera em Espanha, passou o toureio a constituir profissão, e de todas as classes sociais surgiram entusiastas, para. a troco de salários, envergar a casaca do cavaleiro, a jaqueta do moço de forcado ou o trajo bordado do bandarilheiro. De notar, porém, que, na actualidade, não se verifica em Portugal, entre cavaleiros e forcados, verdadeiro profissionalismo, os primeiros porque praticam o toureio por mero prazer e os segundos porque, na sua maior parte pegam toiros por simples tradição e sem qualquer pagamento.
A GANADERIA - O TOIRO DESDE QUE NASCE ATÉ SER LIDADO
O toiro de lide é um produto genuinamente ibérico. Os campos irrigados da Península, tão ricos em sais, constituem a zona, por excelência, para criação de toiro de lide, em manadas que tomam o nome genérico de ganaderias. A «ganaderia» é, pois, um conjunto de gado bravo, necessário a conservação, reprodução, selecção e apuramento de reses destinadas ao toureio.
É esse conjunto constituído pela vacada, propriamente dita (formada pelas fêmeas), pêlos toiros sementais (cujo fim é padrear) e pêlos produtos de ambos. Tem cada grupo vida separada, o último deles com uma subdivisão constituída pêlos toiros feitos e que se acham aptos a ser lidados na praça. O seu tratamento obedece a quantos cuidados a experiência recomende.
Motivo de principal preocupação são as características, em tipo e bravura, das reses nascidas na ganaderia, o que constitui a melhor indicação do acerto ou erro com que se agiu anteriormente. E é esse o aspecto de maior importância para quem se dedica à tarefa de criar gado bravo, já por espírito de «afición», já por interesse comercial. Os sementais de uma ganaderia devem pois possuir, além do melhor sangue, excepcionais características de bravura e serem de formas belas, sãs e robustas. A vacada, por seu turno, deve ser constituída por fêmeas de excelente constituição orgânica, de bom sangue e bravura, divididas consoante a sua corpulência e em tantos lotes quantas as características físicas dos sementais, pois é de maior importância não existir demasiada desproporção entre toiros e vacas destinadas a procriar. Qualquer toiro pode padrear desde os dois anos, mas a idade mais recomendável é depois dos 3 anos.
As vacas podem também ser mães aos dois anos, mas a experiência indica que é preferível sê-lo só depois dos três. De então em diante, e até aos doze, pode procriar anualmente, muito embora haja criadores que as fazem descansar em anos alternados, o que constitui mais um luxo que propriamente uma utilidade.
Numa ganaderia, regularmente constituída, deve existir um semental para cada grupo de cinquenta vacas.
Os sementais são reunidos à vacada por espaço de noventa dias e geralmente na Primavera. Desta forma, o aparecimento dos novos seres verifica-se no Inverno, quando os campos, ricos em verde, podem assegurar às mães abundância de excelente leite. A nova cria mama até aos quatro meses, idade em que principia a alternar com o leite materno a apetitosa e tenra erva que sabe eleger entre a melhor. Cerca dos dois meses dá-se a desmama. Então o bezerrinho, senhor de si mesmo, vai para o campo, em plena liberdade, até que, ao completar o ano, é sujeito à ferra, que pode ser em campo aberto ou no tentadeiro ou pátio da propriedade. Consiste a «ferra» em marcar os bezerros com o sinal e número de ordem da ganaderia. Para isso sé pegam e derrubam os animais, sujeitando-os no solo, única forma de consentirem que o ferro em brasa com a marca do ganadeiro e número de ordem lhe queime a pele, indelevelmente, o primeiro na parte superior da "perna direita, o segunda sobre as costelas do mesmo lado.
Da maior importância é a tenta, que constitui a melhor forma de avaliar as qualidades de bravura das reses. Para isso toda a ganaderia tem o seu tentadeiro, que não é mais do que um amplo pátio, de forma redonda ou quadrangular, fechada por um muro suficientemente alto. tendo uma porta para o campo e outra de comunicação com os currais. Alguns têm acomodações para convidados, lembrando pequenas praças de toiros. O pátio deve ter um arranjo como se fosse uma arena, mas em lugar de trincheira, terá apenas «burladeros» — espécie de tapumes fixos no solo e erguidos a uma distância do muro que permita aos homens refugiarem-se atrás deles, sem contudo ser bastante afastado que consinta a entrada das reses. A tenta é realizada pelo «tentador» (cavaleiro armado de vara de castigo) com a presença do proprietário e pessoal superior da ganaderia. Colocado o tentador (geralmente um picador profissional de reconhecida competência) no extremo oposto à porta dos currais, aguarda a rês, que, ao sair, não deve ser distraída por qualquer ruído ou vulto. Todos os lidadores profissionais ou amadores que, armados do capote de brega estão no pátio, para acudir em caso de necessidade, devem esconder-se por detrás dos burladeros. É tão importante isto que em dias de vento ruidoso ou mesmo quando a brisa traga ao tentadeiro o perfume característico da campina, se devem evitar as tentas. É necessário que a rês, liberta de qualquer influência, forneça, de facto, a medida do seu valor. Para isso, apenas entra, se observam cuidadosamente todos os seus movimentos que representam a forma como reage perante a surpresa de um ambiente totalmente desconhecido. Achando-se só, a rês procura investir e reparando no cavalo acaba por arrancar contra ele. Sofre então o castigo da vara, que o tentador deve dar com a 'maior perfeição. Assim se vê o comportamento do animal. Se recarga, isto é, se se manifesta enfurecido pelo castigo e insiste, indiferente à dor, pertendendo derrubar cavalo e cavaleiro, fornece excelente sintoma de bravura; se, pelo contrário, mal sente o castigo, foge, denotando cobardia e não volta a atacar o picador, não há dúvida que é mansa a rês.
Do comportamento dos animais tentados, vão-se tirando notas e, finda a observação, tratando-se de vacas, convém toureá-las, para se apreciar como obedecem ao engano, o estilo da investida, etc. Finda a prova, a rês é restituída à liberdade pela porta que comunica com o campo. Algumas, nesse momento, negam-se a abandonar o pátio, voltando-se para ele, ameaçadoras e altivas, como num desafio. É também excelente sintoma de bravura.
Nas tentas, o procedimento é o mesmo tanto para fêmeas como para machos — estes últimos, porém, não dever ser toureados e é até recomendável que nem sequer vejam um capote. Dotados de excelente memória, logo denotariam o facto quando saíssem às arenas. Porque o tentadeiro pode dar a conhecer um ambiente semelhante ao de uma praça de toiros, é preferível para os machos a tenta em campo aberto, mais bela, colorida e movimentada do que a realizada no pátio. Dois cavaleiros (collera) separam das outras a rês que querem tentar, servindo-se para Isso de longas varas com que, de seguida a perseguem (acosso) até a conduzirem ao local onde se encontra o tentador — o mesmo que picou no pátio. Aí a rês perseguida, vendo que lhe tapam o caminho, num instinto de defesa, ataca o picador que, tal como no tentadeiro, a castiga. Quanto mais varas toma e mais ferozmente responde a elas, tanto melhor nota terá esse futuro toiro, que assim dá prova da sua bravura ou mansidão.
Após a tenta, o futuro toiro é restituído à liberdade, e aí, em pleno campo, acaba de formar-se no ambiente próprio, entre companheiros com os quais briga, por vezes, ante a impassibilidade dos assistentes, cuja intervenção só se dá para acossar o vencido que. abatido, busca um refúgio para sarar ferimentos e esquecer a derrota.
O toiro, em manada, comporta-se como um animal pachorrento e calmo, de olhar sereno, sem qualuqer aspecto de bravura. Isolado, é temível e, investe sem se impressionar com o tamanho ou forma dos objectos que lhe suscitam a fúria. O cheiro do sangue, excita-o extraordinariamente. Tem prodigiosa memória, o que o torna perigosamente vingativo. A inteligência é reduzida, sendo contudo nobilíssimo a atacar, de uma maneira bastante uniforme, quase comum a toda a espécie.
Aos três anos, deve o toiro possuir boa estampa —trapío— e embora não tenha atingido pleno desenvolvimento, o seu aspecto deve impressionar pela corpulência e beleza física, com perfeito equilíbrio de formas. Se tiver a pele fina; pêlo lustroso, espesso e liso; cabeça relativamente pequena; cornos bem colocados, fortes, ponteagudos, escuros, de regular tamanho e igualmente abertos e arqueados; orelhas pequenas e nervosas; cachaço —morrilho— grande, gordo e proeminente; papada pequena; peito amplo; ventre deprimido: linha dorsal bem marcada; garupa larga e bem musculada; ancas ligeiramente elevadas; cauda comprida, grossa na parte superior, adelgaçando até terminar, em fartos cabelos; articulações bem pronunciadas e flexíveis; membros curtos, mas fortes, e patas pequenas, pode considerar-se um exemplar perfeito, digno de honrar o ferro que ostenta, quando um dia sair para a luta do redondel.
Para complemento desta breve descrição da vida das reses bravas no campo. basta acrescentar que as manadas são guardadas e cuidadas por criados (em Portugal, campinos; vaqueiros, em Espanha), uns a pé. outros a caavlo e com diversas categorias, auxiliados nesse trabalho e nas conduções pêlos cabrestos — bois mansos amestrados— que envolvendo os toiros e misturando-se com eles, os levam, inconscientemente, através dos campos, pelas estradas e povoações, ou entre as paliçadas que formam um corredor propositadamente armado e a. que se dá o nome de manga.
Apesar do que ficou referido quanto ao comportamento do toiro na ganaderia, nem por isso pode esquecer-se o perigo que representa a proximidade e o convívio com ele, posto que são muitas as circunstâncias que podem influir no espirito das reses bravas, a provocar, inesperadamente, alterações desse mesmo comportamento. Por outro lado, sendo necessário, com frequência, realizar conduções e apartados, durante os quais os toiros se mostram surpreendidos e desconfiados por aspectos que lhes não são habituais, nessas alturas, é vulgar manifestarem, de súbito, toda a bravura que os leva a acometer, furiosamente, seja contra quem for. Então, no clima normalmente sossegado da lezíria surgem momentos de excitação logo traduzidos em perigo, pairando no ar, com estranha presença, a ameaça de morte. Por isso a missão do guardador de gado bravo é cheia de dificuldades, até porque em tais emergências, não lhes é recomendável denunciar medo ou sequer fraqueza — o que faz do campino um verdadeiro herói da Lezíria, a quem se exige o maior sangue-frio e um espírito de sacrifício que talvez não exista em qualquer outra profissão.
Por tais motivos, esta referência à criação do toiro de lide ficaria incompleta sem a homenagem merecida por essa figura humilde que tantas vezes tem de agigantar-se para dominar o perigo ou mesmo salvar a própria vida.