“TOUROS DE MORTE EM PORTUGAL - COMENTÁRIOS TAURINOS”, PEPE LUIZ
Em Divulgação Literária Taurina damos a conhecer excertos de mais um dos vros do célebre escritor e crítico taurino Pepe Luiz, escrito há 85 anos.
“ANTELOQUIO
Os factos vão sucedendo como no desenrolar duma interminável fita, e a mão não se cansa de fazer deslizar sobre o papel a pena que o meu espirito obscuro, mas decisivo e forte, impele, movido pela mais sincera das vontades.
A energia recrudesce e a ideia revigora ante determinadas atitudes que se avolumam e intenções que sé esboçam, quando vejo em tudo isto o mal disfarçado antagonismo que anceia tocar a minha sensibilidade e até ferir sentimentos que me sào muito caros, muito intimos, muito pessoais.
Não é facil levarem-me de vencida, venham as inimizades dos apaniguados da Protectora ou dos embriagados pela obceção canerista.
Este despreteneioso trabalho encontra-se á luz da publicidade, justamente porque a insistência de conhecidos e antipaticosS processos, provocam a minha acérrima reprovação; obrigam-me a pôr em fóco novamente um assunto, ingrato é certo, mas que exige uma marcação e conservação de posições que interessam ao prestigio dos nossos artistas, dos autênticos toureiros a cavalo.
E' mais um livro que documenta uma opinião, um parecer sincero e independente; um livro que é o reflexo dum espirito que pugna e que sempre pugnará pela razão, repelindo ataques traiçoeiros e sobrelevando num vigoroso e confiado impulso, a gloriosa tradição nacional expressa na soberba, magestosa e emocionante arte de Marialva, como vulgarmente se chama ao toureio equestre.
Para o motivo que inspirou a factura do presente livro, muito concorreu como poderoso esteio, a sublime evocação da gigantesca personalidade do Marquez de Marialva, o grande remodelador dos processos de equitação, com os quais muito aproveitou a acção do cavaleiro-toureiro, pois até na indumentaria o Marquez introduziu modificações. Evoco, pois, a fidalga e relevante figura desse portuguez de lei, ao apresentar-vos - leitor amigo - esta desluzida mas sincera obra.
Vibram as notas dos clarins. Atravessa os ares,, o rumor proprio duma função que começa. Dão entrada no redondel os personagens que este livro fóca, visando unicamente o aspecto artistico, tal- qualmente como fiz no Ao Estribo e no Canero nunca existiu, cuja continuação está patente nas paginas que se seguem e mostram com exuberância o meu ardente desejo, de não vêr extinguida a cristalina verdade.
Pépe Luís.
Touros de Morte
0 restabelecimento desta lide ein Portugal e a insofismável opinião do mestre das letras nacionais que foi Fialho D'Almeiada. Um pouco de historia. -O Dr. Cunha e Costa e as marra-das dos portugueses. — Corrida de touros, a festa nacional por excelencia. Ferreira do Amaral mais uma vez heroi.
Mau grado a tarefa enervante dos impugnadores da tauromaquia, esta vai tomando aspectos de maior grandeza e de mais acentuada difusão.
Em Portugal a luta tem sido tremenda, predominando sempre a vontade duma minoria cuja sinceridade é muito discutível, muito duvidosa. A sua argumentação é falha daquela concepção que persuade, que convence. Roça, mesmo, pela banalidade, tornando infructifera a conclusão dos seus esforços, não fazendo radicar no espirito publico, a confiança na sua doutrina.
Esfalfam-se os adversarios da tauromaquia a bradar que nas corridas de touros se prostituem as aspirações da alma, o que não dá mostras de civilização.
Estes sucessores de Navarrete, dão-me a impressão que sofrem do delirio que muitas vezes a febre provoca, porque, de contrario, já deviam ter concluido do grande exemplo que fornece um toureiro que vai jogar a vida tanta vez para beneficiar outrem. Tanta casa de caridade vive da tauromaquia. Umas porque são co-proprietarias de taurodromos, outras, porque ali realisam os seus benefícios, e isoladamente, tantas pessoas necessitadas, ali encontram os meios de vida.
Gallito morreu em Talavera numa corrida cujo producto reverteu a favor dum jornalista que vivia em tão precarias circunstancias, quiçá não estivesse longe o fim do seu penar.
Gallito espalhou muito pão pelos pobres, auxiliou muita familia sem recursos, socorreu muito colega inválido, tomou parte em muita corrida, benéfica sem cobrar uma peseta. A pobreza sevilhana, por exemplo, deve-lhe muitos anos de alimento.
Falo de Gallito como poderia falar de tanto toureiro junto de quem a desgraça não póde medrar.
O Monte-Pio dos Toureiros espanhoes foi fundado sob a iniciativa dê Machaqaito e Bombita, que a exemplo de Gitanillo chegaram a entregar ao respectivo cofre, cinco mil pesetas de cada vez. O Monte-Pio actualmente tem em toda a Espanha centenas de viuvas e orfãos subsidiados.
O malogrado Maera declarou no Salão Nobre do Governo Civil de Lisboa, em 1924, que viria trablhar a Lisboa, quatro anos seguidos e gratuitamente, em beneficio dos pobres da capital. Quem assistiu no Campo Pequeno á ultima corrida em que tomou parte o grande Maera, nunca esquecerá alguns episodios de ternura comovedora que nela se passaram. Vi muitas lagrimas e notei tantos soluços dificeis de reprimir!
Os velhinhos, as creanças dos asilos, pobres da rua, todos acarinharam aquela alma plena de bondade, quando o artista na arena se despediu. Espectáculo grandioso este, que para descrevê-lo, certamente se me apertaria o coração, numa convulsão de magua.
Maera faleceu em sua casa em Triana, dias depois de, sem a minima remuneração, tourear em Melilla, a favor dos soldados pobres que se estavam batendo em Marrocos.
Não está na caridade uma das mais alevantadas virtudes da alma?
Dizia Lavater:
“Qu’est-ce que l’elevation de l’âme ? Un sentiment prompt, délicat, sûr pouar tout ce quid est beau, tout ce qui est grand; une prompte resolution de faire le plus grand bien, une grand bienveillance unie a une grand force.”
A bondade da alma expressa na caridade, dignifica um nome, engrandece um homem. A caridade é como o sol, dá luz para todo o mundo. A caridade é dôce quando se oferece ao desgraçado. Esta lucta com a desventura, com a adversidade que os negros dias da sua vida lhe trazem.
Os toureiros lutam com a morte, muitas vezes para valerem aos infelizes, aos famintos, aos desprotegidos da sorte.
“Si ton âme est en bon état, tu as tout ce qu’il faut pour être heureux.,,
Plante.
O artista que luta com uma fera, em beneficio do seu semelhante, não póde ter alma ruim. O culto da humanidade está em prezar a vida do homemr rodea-lo de todo o prestigio e conforto. É, portanto, logico que exalcemos o nome dum homem que arriscando a vida, vai aliviar a dôr e apagar a rude angustia do seu semelhante.
As chamas da caridade secam tanto as lagrimas da dôr, quanto maior fôr o esforço, a sinceridade e a tenaz vontade em produzir o bem.
Quanto ao facto da civilização ser maculada pelas corridas de touros, tambem é possivel a contestação.
O exemplo da Espanha, da França, da Italia e da America, fornece-nos elementos primorosos para rebatermos as afirmações dos que hostilizam as corridas de touros.
Ultimamente, na Republica do Uruguay, foi legislado no sentido de serem restabelecidas as corridas que desde 1889 estavam interrompidas.
Nos reinados de Carlos III e de Izabel II de Espanha, a par do vigor que a tauromaquia tomava e se desenvolvia, a civilização estendia-se prodigiosamente em todas as mais variadas manifestações. A Espanha ainda hoje marca exuberantemente nas artes, nas sciencias, na industria e na agricultura.
No entanto, parece-me qpe não é um paiz selvagem, como o não é a França, a Italia e as republicas americanas onde se realizam corridas de touros.
Nào é a tauromaquia uma escola de destreza e vigor? A acreditarmos na doutrina dos detractores das corridas, parece que um povo para se civilizar perde a força, a virilidade.
Será porventura um homem civilizado, um cobarde ? Não. Nào é possivel.
Parece-me que um povo vive tào feliz quanto mais largamente espande a sua alegria e para isso c justo que recorra aos seus divertimentos favoritos.
O povo trabalha. E' justo que se distraia, assistindo a espectáculos que não trazem perigo algum para a humanidade, como o que oferece o animatografo.
O povo entusiasma-se com as corridas de touros. Porque se ha-de contraria-lo? Quem quere, vai. Quem não gosta...
Em dia de corrida, quanta animação atravessa as ruas. O povo caminha, diagnosticando sobre a função que vai presencear. O movimento dos automóveis e dos trens, dão a nota de animação e de vida própria do ambiente que a corrida de touros gera. Dentro da praça, á maneira que se aproxima a hora do inicio da festa, as bancadas vão-se enchendo, a falacia, a vozearia e os pregões crescem, avolumam-se.
As mulheres bonitas, os labios rubros, os olhos faiscantes de sedução, tornam o quadro mais caracteristico, mais rico de côr. E quando aparece um panolon castizo, uma airosa mantilha andaluza ou um multicolor manton de Manilla ?
Acabam-se as tristezas para elegermos na nossa imaginação o que de mais apoteótico nos poderá encantar.
A téla muda de colorido, quando os clarins sôam anunciando que a festa se vai celebrar.
Vem a proposito a saudação que remeti ao Seda y Oro, excelente revista taurina sevilhana, de que sou correspondente em Lisboa, e que ha pouco completou trez anos de existencia:
SEDA Y ORO
Em tardes de sol, a multidão
Exulta e expande a sensação
Que á festa brava lhe prende o sentido,
Ao seu encanto, grandeza e colorido.
Um clarin sôa
E logo rebôa
A vozearia
De que ressalta vibrante,
A perfumar-lhe o espirito,
Um "passe doble,, castiço
Alácre e subjugante.
Surgem "cuadrillas,,,
E na profusão das côres
Das jalecas e casacas,
Erguem-se altivas e dominantes,
Excelsas figuras
De valentes toureadores
Que em rasgos de heroismo
Afirmam a beleza
Duma Arte recendente
A nobreza.
“Seda y Oro,,
Canto de fé e de sedução,
Hino á festa e ao toureiro,
Fontes de valor e d'emoção
E’ “Seda y Oro„
Simbólico padrão:
A seda brilha no traje
E o ouro no coração!
O ilustre causidico, Dr. Cunha e Costa, naturalmente para prestar um serviço, aliás gracioso, julgo eu, á Protectora dos Animais, declara que entre o caracter nacional e os touros de morte não ha relação alguma. E vai d'aí, para revigorar a sua argumentação, diz que o portuguez nas horas decisivas da vida nacional não marra ou deixa de marrar por analogia.
Ha um facto incontroverso que convem apontar antes de mais nada. As corridas de touros efectuadas em praças espanholas, fronteiriças, teem sempre a anima-las uma enorme assistência de por tuguezes. Salamanca, Ciudad Rodrigo, Badajoz, Ayamonte, etc., podem atesta-lo. Em Badajoz já não é a primeira vez que vejo cêrca de trez quartos de praça ocupados por portuguezes. (A praça de Badajoz tem uma lotação de 9.500 pessoas.)
Ora, parece-me que tão elevado numero de portuguezes que assistem àqueles espectáculos, não é impelido pelo desejo de gastar pesetas.
Em Portugal, quando corre o boato de haver touros de morte em qualquer praça, embora com entradas caras, lá se enche a casa, para satisfação dos organisadores, das entidades beneficiadas e do publico que vai assistir a um espectáculo da sua predilecção.
Porque não ha-de o caracter nacional reflectir-se nas corridas de touros de verdade, se elas em Portugal estão interrompidas ha pouco mais de seculo e meio?
Não estará no toureio a cavalo, uma das mais luminosas facetas do espirito artistico portuguez?
Quanto ás marradas dos portuguezes, não vejo que a piada quadre bem.
E’ que o Sr. Doutor nunca deixou de ser um blagueur impenitente.
Isso de marradas, é muito duro.
No tempo do Liceu do Carmo, lembro-me dos meus condiscípulos empregarem o termo—marrar - quando queriam dizer que o coração batia com furor, ao acompanhar a cadencia do pisar dos delicados saltos dalguns sapatinhos de costureira namoradiça !
Diz o Sr. Dr. Cunha e Costa que os francezes passam sem touros de morte. Vê-se que na Universidade não ha uma cadeira cujos ensinamentos profundem o fôro taurino, porque de contrario, os advogados saberiam que em França ha cerca de trinta praças de touros onde as corridas para serem exclusivamente á espanhola, só lhe faltam os cavalos sem peitoral algum. A de Marselha comporta cerca de 11.000 pessoas, Aries 7.500, Bayona 9.500, Bordeux 9.000, Dax 8.000, Mont de Marsan 10.000, Nimes 21.000, Toulouse 7.000, etc.
Até á primeira metade do seculo XVIII as corridas de touros em Portugal e Espanha, tinham um caracter análogo e não poucas foram as vezes em que portuguezes tourearam em Espanha e vice- versa. Esse intercâmbio artistico intensificou-se no tempo dos Filipes, tomando as corridas de touros um aspecto de Ostentação e riqueza.
O toureio limitava-se á lide equestre. Reis e fidalgos punham á prova a sua coragem, elegancia e saber, no toureio equestre, em cujo trabalho eram auxiliados por uma grande quantidade de creados. O toureio a pé não merecia importancia.
Foi Francisco Romero que deu relevante impulso á infantaria taurina, fazendo revestir as suas faenas de uma feição artistica que causasse emoção.
Romero inventou a muleta para matar os touros frente a frente. Mais tarde apareceram “cuadrillas,, já regularmente organizadas e que tiveram por maestros os grandes Pedro Romero, Pepe Illo, chegando aquele a tourear em Lisboa em 1795, creio que por ocasião do baptisado dum principe. A corrida realizou-se no Terreiro do Paço e a ela não foi estranha. a sublime figura do Marquez de Marialva.
A aficion nesta data tomou um extraordinario incremento com a aparição de Montes, Cuchares e Chiclanero. A Montes, os escritores da epoca chamaram o Napoleon de los toreros e Pedro Romero foi cognominado: o Alexandre da Tauromaquia.
Mercê da incomparavel aptidão destes homens, o toureio foi adquirindo formas novas.
Que grandeza heróica não encontramos numa estocada recebendo ?
O valente diestro, firma-se deante do touro, muito proximo deste. Passa de muleta com graça, salsa toréra, quieto, girando sobre os calcanhares, o suficiente para dar sempre a cara á fera que passa rente ao impávido lidador, procurando-o furioso, com o objectivo de o destroçar. Segue atraz da flamula que engana. Mercê dum fluido que electriza, o espectador está atraido, assombrado.
O artista cresce; sabe que a multidão o admira.
Estende a muleta e perfila-se deante do testuz do touro. Junta os pés, aponta a espada e espera. Adeanta levemente um pé, estende o braço esquerdo em que ostenta la franela roja. Provoca com a sua voz, o touro que arranca e inclina o pescoço para ferir com as suas formidáveis armas. O homem imovel e sereno, deixa que se acerque, fa-lo sempre seguir a sua rota a favor da muleta, crava o acerado estoque, e o bravo animal, encolhe-se e cambaleia.
Esta é a sorte que os cânones chamam matar recebendo.
Na lide a cavalo, em que o portuguez é exímio, não deixamos de encontrar maior magestade, mais arrojo -e galhardia.
Eis o que afirmo no "Ao Estribo„ : Um cavaleiro numa corrida de touros é o mesmo que um facho rutilante, que nos prende o espirito e arrebata a alma.
O evoluir dum corcel majestoso e ágil, dominado pelo garbo dum cavaleiro a que está aliada a sciencia dum toureiro, consubstancia o soberbo conjunto promotor de estrepitosas aclamações que, por vezes, tocam o delirio.
Cavaleiros! Insignes varões que iluminam o mundo da aficion com os fulgores da sua incomensurável audácia e perfumam a atmosfera com nuan- ces de classissismo e ondas de reiterada elegancia!
Só o genio colossal dum cavaleiro - digno do nome - póde opôr resistencia à arremetida dum touro espumante de raiva, e, sem ficeles, dominá-lo com a mais luzida galhardia.
Nada ha mais arrebatador e profundamente emotivo do que um heroe do torneio, de tricorneo emplumado, envergando uma casaca de seda em que se destacam brocados d'ouro luzente e os punhos de renda a envolver as luvas.
Firmes na sela, irrepreensivelmente aprumados. A mão esquerda, na atitude mais natural, segura as redeas e maneja-as sem o esforço que provoque reparos ; o cavalo de linhas correctas, pêlo luzidio em que se espelha o recorte dos arreios. E' este o superior conjunto que nos oferecem o cavaleiro e o cavalo. O traje á Luiz XV e o ajaezado á Marialva, são manchas ricas de colorido que tornam grandioso o quadro; que reproduz uma das mais interessantes fases da festa.
Um lidador elegante, e animoso dirige o seu cavalo em direcçcào à cara do touro e, a curta distancia deste, promove a rotação.
No momento da reunião, em que a rez a humilhar, pretende atinjir o bojo da montada, parecendo por vezes roçar os pitons pelo estribo, o câvaleiro, de braço estendido, crava de alto a baixo, o ferro ou o rojão, com tal frescura e acerto, que das agulhas— fulcro de atentos olhares — se desprende um fio de sangue quente.
Observadas as regras, cumpridos os preceitos da arte, a multidão irrompe em frementes aclamações, num sublinhar continuo, tão victorioso, quão sublime lance.
Pelo que acabo de expôr e ainda no que poderia alongar-me, se prova que o portuguez, desde recuadas eras, não é indiferente ás corridas de touros — isto é, os portuguezes que não preferem o estrangeirismo nos seus divertimentos predilectos.
Também não são os portuguezes que combatendo as corridas de touros, se alimentam de chá, oleo de figado de bacalhau e cabidela de galinha, desprezando o sacrifício a que são forçados esses animais que não investem contra o homem...
Não se admirem, pois, que haja quem proclame que a corrida de touros é a unica manifestação de virilidade dos peninsulares.
E’ a festa nacional, a mais emocionante e tradicional, que vai tomando vulto e segue gloriosamente, com o seu explendor e beleza, provocando o ardente entusiasmo do publico que a considera o seu espectáculo favorito.
Ninguém póde duvidar que Fialho foi o relevantissimo espirito que manteve as letras portuguezas numa altura e num brilho extraordinario. Era pensador e irónico. Os seus conceitos são leis, e os seus escritos constituem verdadeiras paginas d’ouro.. Pois Fialho opinava da seguinte maneira, ácêrca das corridas de touros de morte:
A morte do touro, é uma coisa absolutamente indispensável no grande torneio duma nação peninsular. Abater a féra, eis o complemento dessa luta ciclópica com o homem, o ultimo quadro da tragédia onde o tirano negro esparce ás mãos do galã bordado a ouro, de espada alta e apoteótico como o arcanjo Miguel sobre o diabo.
Oh, é supremo. Todos os particulares de toureio tendem a ele, evolutivamente, em sucessivas cadencias d’arte e agilidade. Com touros sem morte, ê como que vencer uma batalha sem honras de triunfo.
Estes riquíssimos pedaços de prosa, devem ser lidos pelos indivíduos que desprezando a sorte do homem que é o rei dos animais, choram a morte da féra em cujas veias corre sangue bravo que para outra cousa não serve senão para revigorar a acometividade.
Venham, pois os touros de morte e o respectivo regulamento.
Touros de morte, mas com artistas dignos do nome. Não devem ser admitidos maletas, a matar, nas praças de Portugal.
De contrario comprometer-se-ia o brilhantismo da festa, como sucedeu na tarde em Alcochete, em que Canero actuou como espada.. .
Fóra os maletas.
Agora aos da Protectora dos Animais, atiro-lhe este beijinho:
“Ha anos uma pessoa que possuia um cãosinho, viu-se obrigada por circunstancias varias, a retirar para terras estrangeiras.
Este caso forçado, deixou-a apreensiva por não saber onde deixar o animal a quem dedicava muito carinho.
Teve a justa ideia de procurar a Sociedade Protectora, pedindo-lhe para albergar el perro a trôco duma importancia convencionada.
Sábem a resposta que obteve?
Então a Sr.a pensa que isto aqui é asilo de cães ?
Tableau !...
Não ha duvida que a corrente favoravel aos touros de morte, é muito mais poderosa do que a outra que á força de hypoçrisia, quere fazer vingar os seus propositos anti-taurinos? Ora a oposição é livre. Podem combater as corridas e os touros de morte; todavia, não teem o direito de se impôr, contrariando a vontade da grande maioria dos portuguezes. Sabemos que as influencias são enormes. Nas hostes da Protectora lavra a desmoralisação.
Estão malucos, e, senão veja-se o que se passou numa conferencia promovida por aquela benemerita Sociedade, conforme narra o diario A Ideia Nacional que neste caso, tem assumido juntamente com outros colegas, a mais digna atitude. Que venham os touros de morte, com o respectivo regulamento.
Não queremos, nem maletas, nem touros corridos.
Cobre-se por cada touro estoqueado, uma quantia destinada á beneficencia: aponha-se em cada touro corrido, um sinal, para sabermos quais são os puros; que se não consintam corridas de verdad em praças que não reunam condições para isso (mesmo no Campo Pequeno em que a arena não está preparada suficientemente para tais lides); obrigue-se as emprezas a terem pessoal de enfermaria e o material cirúrgico condignos, não esquecendo o veterinário, etc.
Quanto a uma parte dos nossos toureiros de pé, aqueles que não fazem outra coisa do que sacudir o pó, com os capotes, largando-os constantemente na arena, esses serão selecionados. .. pelos touros. Os touros se encarregarão de os prevenir que para ser toureiro, é necessário possuir alma. .. e ha por ahi cada desalmado!
Patas arriba! exclamamos com o calor que nos subjuga a alma.
Patas arriba, pois, com a pieguice nacional, com a choraminga neurastenica dos que ha dois séculos veem impondo a sua injustificada vontade. Patas arriba com a hipocrisia dos que se dizem amigos dos animais e, no entanto são indiferentes a tanta calamidade que vexa, oprime e entenebrece a vida do homem que afinal é... o rei dos animais.
Desprezemos a sinfonia lamurienta daqueles que temperam os bifes e o coelho á caçadora, com uma caudalosa torrente de lagrimas... e volvâmos os olhos para a festa cuja assistência é facultativa e que não tem outro fim que não seja o de marcar, atravez de pinceladas fortes, ricas de côr, toda a magestade, toda a grandeza heróica dos episodios que fornecem á coragem e á audacia, a mais elegante e airosa feição.
O restabelecimento das autenticas corridas de touros em Portugal, vem trazer ás nossas arenas, o aspecto de que elas careciam.
Uma corrida de touros vinca um significado tanto maior de emoção e de entusiasmo, quanto mais intensamente vibrarem os nossos nervos, ante a sequencia de uma faena que se desenrola e se remata com a apoteose dum lance grandioso.
Ora, as corridas como até aqui as presenceava- mos, não eram caracterisadas por aquele arrebatamento artistico que nos dá a sensação de dominio que a valentia gradua e a naturalidade suavisa.
Ainda sob o ponto de vista económico, tambem as corridas trazem receita bastante proveitosa. E' o Estado que recebe as contribuições num superior quantitativo, visto que aumentam os espectáculos taurinos. As Misericórdias, Azilos, Casas Pias, e outras instituições de beneficencia que; interessam nos lucros de muitas praças de touros, tambem veem os seus recursos avolumados.
Igualmente o comercio e a industria, as emprezas de viação, etc., beneficiam com o desenvolvimento das funções taurinas.
Emfim, tantos e tantos casos podiam aqui ser enumerados e que recomendam a adopção das verdadeiras, das autenticas corridas de touros.
Que venham as corridas de verdad, mas com um regulamento exequivel que garanta o mais possivel, o bom resultado do espectáculo.
Nada de exploração. Nada de maletas a comprometerem a festa. Exijam-se responsabilidades a quem as tiver na organisação de corridas.
Urge que se satisfaça plenamente a aficion, dando-lhe espectáculos honestamente preparados, de fórma a manter-se um seguimento interessante, que atraia em vez de repelir. Aproveite-se, pois, a boa vontade de quem está empenhado no progresso das corridas de touros, a que o nome portuguez está tão brilhantemente ligado.
Não permitamos a decadencia da festa nacional.
Temos direito a boas corridas de touros. Demais num paiz que já teve como deputados os Srs. Dr. Jorge Capinha e o Sr. Luiz Rojão, é justo que a tauromaquia represente uma força indestrutível! No espirito do nosso povo, perdurará a ardente simpatia pela festa dos touros.
Viva pois, a Festa Nacional.
Àcêrca dos touros de morte diz o eruditissimo escritor e meu querido amigo, Rocha Martins, Director do A. B. C., o seguinte:
Mas neste caso dos touros de morte, ha um duelo terrível e não uma barbaridade. E' o duelo da inteligencia e da destresa com a força e com a manha, por vezes. Muito mais indigno é o combate de galos. O boi tem sempre o mesmo fim: o bife, o assado, o cosido, por mais que os seus defensores o queiram indene das mãos do cosinheiro. Se ha-de morrer de olhos tapados num matadoiro, às mãos dum magarefe, acaba diante dum artista que o desafia, o excita, o vence ou póde ser vencido por ele.
E mais adeante, com aquela perfeição que distingue um dos mais lidimos paladinos das letras nacionais, conclue o aludido jornalista:
Seria melhor acabar com a hipocrisia e ir aclamar o toureiro à praça onde só vai o publico que ama a lide e ninguém é obrigado a ir presencear espectáculos de que não goste, o que não sucede ai nas ruas...
E' uma verdade.
A corrida de touros é um espectáculo facultativo. Reedito algumas das considerações que apresentei no livro “Ao Estribo,,:
A corrida de touros observada pelo lado plástico, viril e filantropico, revela um preciosíssimo significado que não é vulgar encontrar-se em qualquer outro genero de espectáculo.
O elemento touro, dadas as suas condições de féra, colabora poderosamente nas corridas, pois que é dele que deriva a afirmação artística do homem com quem tem de defrontar-se.
Não é o boisinho doméstico, que as Protectoras e as Ligas intencionalmente confundem com o touro, animal feroz que o homem tem de lidar com o risco da sua própria vida, muitas vezes ao serviço de causas humanitarias. Não é o boi que puxa o arádo e anda jungido aos varais das carroças, que aparece no redondel, resfolgando de bravura e espumando de raiva, a impôr a força do seu poder e muitas vezes, tambem, o seu instinto de maldade*
O boisinho não é o touro, senhores protectores.
Não derramem lagrimas, porque ninguém acredita na vossa piedade.
E não acredita, porque me consta haver socios da Protectora que possuem carroças e estas vêmo- las todos os dias carregadissimas e tiradas por famintos animais, que a golpes de chicote, sobem as ladeiras da cidade.
Ninguém acredita na choraminga dos socios das Protectoras e das Ligas, porque é facil admitir que eles se banqueteiem com belos manjares de coelho à caçadora, frango assado no espeto, não falando nos suculentos bifes extraídos de algum boisinho que tanto serviço prestou ao homem !
Que falta de protecção á memória dos animais !...
O- tenente-coronel Ferreira do Amaral um dos heroicos soldados da Flandres, foi a alma de epopeia que animou a tremenda luta contra a tenaz e injustificada coação que vinha triunfando havia dois séculos.
Ferreira do Amaral foi o espirito forte, combativo e victorioso. Foi o artista que deu a puntilla na pieguice nacional. Foi o homem que levantou a flamula do triunfo, sujeitando a seus pés a hipocrisia mascarada de comiseração.
Bem haja, pois, Ferreira do Amaral que foi mais uma vez heroi.
A moda não está nos touros de morte. Está, sim, nas calças exageradamente largas e nos atropelamentos d'automoveis. Antes havia o seu atroplelamento que não atingia mais do que uma pessoa.
Agora é aos magotes!
E a Protectora tão calada !...
Não é demais repetir aqui uma parte da minha conhecida opinião ácêrca do assunto que tanto tem assoberbado a Protectora e seus adeptos.
Protestam, dizem eles, porque não admitem que se mate um animalzinho numa arena rodeada de espectadores ?
O animalzinho, neste caso, é o touro, uma autentica féra que a hipocrisia da Protectora e das Ligas, confunde propositadamente com o boi domestico.
O touro e o boi são animais bem distintos.
O primeiro caracteriza-se pela fereza que lhe é proporcionada pelo sangue bravo da sua casta ou das castas de que é oriundo. Salvo rarissimas excepções, o seu instinto ferino não permite ajustar-se aos mesmos serviços do boi, do que se conclue claramente que o touro é um animal que nasceu unicamente para ser lidado.
Deixem-se de utopias, srs. protestantes, e integrem-se bem no sacrifício infligido aos bois, por esses matadouros fóra, não falando nos pontos do paiz onde nem matadouros existem.
Contra a maneira como se abatem os bois e outros animais indefezos, nos referidos locais, é que os srs. devem protestar, porque semelhantes acttas tambem teem publico a presenceá-lo.
Varias vezes verifiquei esses civilizados processos de abater animais, como, por exemplo, tirarem a pele a carneiros vivos e que se encontravam pendurados havia largo tempo.
Já viram os judeus matar as rezes destinadas à alimentação da sua colonia?
E’ o martirio lento, torturante.
Duma outra vez, observei uma scena edificante e que certamente se repete com o fingido desconhecimento da Protectora e das Ligas.
Quando um boi — daqueles que tanto serviço prestam ao homem, para depois serem comidos por vaca, pelos referidos protestantes, — resiste à entrada no recinto onde ha-de ser abatido (essa relutancia é quasi sempre motivada pelo cheiro exalado por carne morta) o animal ao resistir, é alvo das. maiores barbaridades, que chegam á violência de lhe aplicarem nas unhas, fortes pancadas vibradas com ferros ou paus ferrados, obrigando-o assim a dobrar.
Tambem, se o animal se nega a entrar no recinto do suplicio, dobram-lhe o rabo, fazendo o partir em tantos bocados, quantas vezes são precisas para que o serviço seja completado.
Quanto mais cruel não é o que se pratica em locais onde se abatem os animais destinados á alimentação publica, do que o que observamos nas corridas de touros de morte, em que uma féra, mantendo luta com o homem, põe este em risco de perder a vida.
Na pelêa, ha valor, emoção e beleza, emquanto que nos matadouros e noutros locais destinados ao mesmo fim, nada daqueles factores se registam.
Um touro no calor da luta cresce de raiva, espuma-lhe a boca, de ferocidade, vizando somente inutilizar o homem.
Se assim é, porque razão não ha-de o homem, valer-se da sua sciencia e valentia para inutilizar a féra?
Sim, porque a tarefa de matar touros possue as suas leis e argumentados princípios, que teem de ser levados á pratica, com o fim do toureiro, depois de se defender das acometidas da féra, lhe dar a morte, o mais limpa e rapidamente possivel.
Em tudo isto o artista derrama arte e valor que o portuguez seguindo a mais nobre das tradições, aprecia com profundo interesse.
Porque é que se protesta?
Protestam porque a inconsciência é muito grande e a noção da piedade é a mais falsamente interpretada.
Choram a sorte dos touros, mas não se contristam com a do homem !"
In “Touros de Morte em Portugal - Comentários Taurinos”, Pepe Luiz, Lisboa 1927, edição da Papelaria e Tipografia Paleta d’Ouro (desenhos de A. Martinez de Leon e A. Duarte d’Almeida)