Sem data, editado pela Livraria Bertrand, este livro compila textos de muitos e reconhecidos prosadores e poetas sobre o Ribatejo, num trabalho coordenado por Natércia Freire, quem nas frases do editor foi “nome dos maiores da poesia portuguesa, escritora de ideias e de emoção, que à sua região natal – o Ribatejo – tem consagrado páginas de extraordinária beleza em prosa e em verso foi a organizadora deste volume da Antologia da Terra Portuguesa e a autora do notável estudo etno-literário qe o precede.”
Ainda nas guardas deste livro, escreveu-se o seguinte: “O Ribatejo, a lezíria, as margens idílias do Tejo, Santaém, Almourol, Tomar, Alenquer e tantos outros pontos centrais da História, da paisagem, dos monumentos e dos costumes, numa das mais belas regiões do país, passam nas páginas do 6º volume da Antologia da Terra Portuguesa em trechos de poetas, escritores, ensaístas, jornalistas e críticos de todos os tempos. É uma sinfonia verde, clara e viva, que reflecte a lezíria, o gado bravo, o campino – motivos perenes do Ribatejo.”
Deste livro, com mais de 200 páginas e magníficas fotos a preto e branco e quarenta textos de outros tantos autores, incluindo Luis Vaz de Camões, não resisti a escolher um de 1907, da autoria do grande Miguel Torga e intitulado:
«FAIXA ESCARLATE E FESTIVA A CINTA DE PORTUGAL»
«O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num dia de cheia, ou das bancadas de uma praça de toiros, numa tarde de Verão. Num dia de cheia, porque o Tejo hipertrofiado marca-lhe exactamente a extensão e os contornos que a geografia nunca encontrou; numa tarde de toiros, porque é no redondel que se precisa a sua íntima signifcação.
Chamar Ribatejo às excrescências da Beira, da Estremadura e do Alentejo, pode fazê-lo o Estado para efeitos práticos de «adaministração». Mas o espectador atento que do miradouro escalabitano contemple uma inundação, ou assista a uma pega na arena, esse fica a saber não só que apenas a lezíria merece o apetecido e colorido nome, como descobre ainda a alma da própria região.
Quando o rio entumesce, e um mar de água se espreguiça por quilómetros e quilómetros de terras baixas e porosas, Portugal, sempre sequioso e árido, sente que aquela nesga de pátria é um mundo à parte dentro das suas entranhas – um mundo rico, de aluvião, de maná, onde não é preciso tirar dos abismos, a gastalho, a verdura duma couve, e se pode gastar o tempo numa lúdica e alegre faina, a cavalgar nas asas do vento...
As lagos da Estrela, de Quiaios, de Pataias, de Fermentelos e de Mira são uma concha de orvalho ao pé dessa baía interminável e solene que os olhos não se cnasam de admirar, maravilhados de que existam fontes capazes de tanta abundância e frescura. Se por sorte o sol se vem reflectir na grande superfície do espelho, então o fenómeno torna-se sobrenatural, porque se unta à líquida impressão diluviana a pureza de uma claridade celeste. Ilhas de casario aqui e além, semeadas no bojo do grande oceano, certificam que também há perigo e perda nessa avalanche. Vidas em risco e colheitas perdidas. Mas os sentidos negam-se a semelhante convicção. Espraiam-se felizes ao lume de água, na ínima confiança de que não pode acontecer qualquer desgraça numa Canaã pelos numes da fertilidade.
E, em termos absolutos, não pode. Mesmo que a corrente leve os favais e macere os pâmpanos, a nata fica e dá erva. E é de erva que se alimenta o gado. As grandes searas da campina, embora desafiem as alentejanas, não lhes levam a palma. Mas o toiro que irrompe do curro, negro e luzidio, e o cavalo que o espera, nédio e nervoso entre as esporas do cavaleiro, esses não temem confronto e são o produto específico da terra ribatejana. Só nela o puro-sangue pode encontrar o seu húmus, a virgindade de um solo que um deus ainda visita e fecunda. Ele e o homem que o domina, não em luta desigual e traiçoeira. Mas saltando-lhe para o lombo ou recebendo-lhe a marrada impetuosa e cega no peito. Na articulação dos três lados do triângulo – campino, cavalo e toiro – conjugam-se as últimas forças viris que restam a Portugal dos tempos livres da natureza, das eras selvagens e testiculares que a civilização castrou.As sociedades protectoras de animais quadrúpedes e bípedes têm-se esforçado por negar à vida a legítima afirmação das suas leis profundas.O instinto, porém, protesta ainda. E homens e bichos, irmanados no mesmo ardor que ele desperta, encontram-se dia a dia nos terreiros que o sol da razão não ilumina. Ora, é no Ribatejo o sítio do mundo onde esse embate é mais belo e natural.
A luta, ali, não é para servir nenhum senhor, ou distrair a atenção inquietante das massas. É um lúdico acto de coragem, alegre e soalheiro. Por sentir que o combate que vai travar não é um fruto do rancor mas o desabrochar de uma espontânea solicitação, o campino veste-se de garridos trajes, ergue na mão um pampilho, o ceptro da sua majestade, o símbolo duma grandeza feita de graça e valentia e, quando soa na praça o clarim da refrega, é assim vistoso e confiado que ele se expõe. E chama festa brava à lide gloriosa!
O toureiro português, ribatejano, é a prova de que nem tudo no homem é cobardia de açougue, mistificação vegetariana. A vida é um desempate permanente e o que é preciso é jogar com limpeza e formosura em cada número de caprichosa roleta.
Dos lastimáveis defeitos do português, o mais belo certamente a manha sorna de ter sempre na manga do casaco um baralho falsificado – uma navalha de ponta e mola, uma pistola de cinco tiros, um porrete erguido por detrás de uma bouça, uma aleivosia diabólicamente maquinada. Há ainda no resto do País vestígios de uma sinceridade virginal que a casuística não conseguiu corromper. Mas, inculta e perdida nos boqueirões das serras, exprime-se, nos seus momentos de desvairo, com a bruteza dos brutos.
No Ribatejo, porém, às portas da capital, o campino pode dar largas aos seus impulsos sem ferir o semelhante. A natureza conservou-lhe esse dom. O seu colete encarnado é uma mancha quente de sangue e de alegria a atrair a fúria dos bisontes. Num gesto voluntário de puro risco, a força humana lança o desafio, possessa do gosto sensual de viver ou de morrer em beleza no meio de uma paigaem aberta, fresca e generosa. E é bonito vê-la triunfar, dominar, e marcar a fera com a brasa da corgaem que a venceu.
Na sua planura fofa e ubérrima, na melodia dos seus chocalhos e na harmonia da sua cor, a terra ribatejana é um grito de felicidade incontida no corpo da tristeza lusa. É uma faixa escarlate e festiva à cinta de Portugal.»
In «Portugal»
Fotos: DR