«O TOURO E A ARTE DE TOUREAR», DE JOSÉ CUNHA DA SILVEIRA
Este livro recolhe, em edição de 1971, um vasto conjunto de trabalhos deste insigne aficionado, e em que muitos deles datam de meados dos anos cinquenta do século passado e foram publicados no jornal «Festa». É mais um dos livros de enorme interesse para o aficionado e decidi escolher para todos vós alguns trechos do artigo de fundo intitulado «As cinco linhas puras da tauromaquia», a páginas 125 e seguintes.
“Sol, Touros, Alegria –
- e um pouco de Fantasia!
O conceito de escola em tauromaquia sempre se me afigurou uma fórmula inexpressiva para definir a personalidade dos toureiros – e mais ainda, para acompanhar a feição artística do toureio na sua evolução através do tempo.
É possível que numa época recuada bastassem as expressões de toureio de Sevilha «movido, floriado, alegre e de pernas» e de toureio de Ronda: «sóbrio, sério, parado e de braços», quando a lide era mais simples e o berço da maior parte dos toureiros estava quase circunscrito à Andaluzia. Os toureiros seguiam então os princípios e as maneiras dos mestres: e estes, por seu turno, reflectiam o carácter dos povos das regiões da sua naturalidade. (…)
Penso que a forma de executar o toureio, é acima de tudo, uma interpretação pessoal, produto da maneira de entender e sentir a arte de tourear.
Depende portanto também dum conjunto complexo de factores: recursos, inteligência, intuição, valentia, temperamento, sensibilidade, inspiração, que condicionam o estilo e definem a personalidade. (…)
Parece-me, no entanto, que do ponto de vista taurino há alguma vantagem em separar os toureiros segundo as suas divergências e reuni-los de acordo com as suas analogias. Um tal critério de arrumo facilita não só o conhecimento dos seus caracteres dominantes e possibilidades efectivas, mas também a compreensão de certas ocorrências que se originam e gravitam em torno da festa brava.
Por exemplo, a crítica duma corrida, as exigências do aficionado, a forma de picar um touro, a confecção dos cartazes, a escolha das ganadarias, deviam cingir-se, de algum modo, à classe ou categoria do toureiro, definida nas bases duma seriação de valores. (…)
Seguindo o critério mencionado estabelecemos cinco grupos, que são afinal as cinco linhas puras da tauromaquia. Nelas é fácil incluir os matadores de touros mais representativos. (…)
Toureiros de estilo basto, coração audaz e estocada certa.
A este grupo pertencem os grandes estoqueadores, os especialistas da estocada. Constituitam a espécie de maior apreço, outrora quando as fainas de muleta não tinham a primazia e só a estocada contava. (…) É que a estocada – e o denodo que subentende – resumia o essencial e definitivo duma corrida de touros. (…)
Todavia, a sorte de matar continua a ser, se não a mais difícil, pelo menos a mais arriscada e a de maior mérito – o lance culminante da autêntica festa de touros.
Poucos toureiros modernos praticam a estocada a volapié com preceituam as regras: perfilar em curto, mostrar o peito, olhar o cachaço, entrar a direito, cruzar a ponta do corno, cravar o estoque e sair intacto pelo costilhar.
Só assim os touros saem mortos e não moribundos e só deste modo a estocada é remate digno duma faina de muleta emocionante. (…)
Toureiros de arte excelsa, ânimo fraco e capacidade limitada.
Os toureiros deste grupo são os chamados estilistas, aqueles que inundam a arte de tourear de luz, de alegrias, de magnificências.
De reflexo rápido, movidos por uma inspiração repentina, modelam na arena formas estatuárias de beleza sem par e desenham com o touro estampas reluzentes, plenas de harmonia e de cor.
Ressuscitam sortes esquecidas, descobrem novos lances, aperfeiçoam velhos passes, mudam trilhos e cadências, espalham ritmos estranhos.
É graças a eles que o toureio se enriquece, apura, afina e renova. Toureiros de engenho artístico e de emoção estética, pelo efeito que produzem à vista, isto é, de aparência – e por isso cuidado, que a aparência às vezes engana! (…)
O touro é a ferramenta do toureiro, como o pincel e as tintas são os instrumentos do pintor. É justo que eles procurem o touro, que escolham o touro, que lhes dêem o touro. (…)
Toureiros de ímpeto fulgurante, perícia malabar e tragédia iminente
Englobam-se neste grupo os toureiros que saem a tourear esquecendo ou desprezando normas e tradições, apenas dispostos a arrimar-se, a dar tudo sem reservas: vista, surte y al toro!
Representam a vontade, a plenitude, a destreza, o movimento. A sua marca é a ousadia, que supõe o desprezo das dificuldades ou riscos, acompanhado duma excessiva confiança na fortuna e na sorte. (…)
Dantes a emoção provinha do touro com arrobas, estampa e sentido; presentemente vem do toureiro que se arranca e cola ao touro quando o touro não se arranca e cola ao toureiro. Por isso os acompanha aquela força invisível e misteriosa que se chama atracção.
Estes toureiros de sensação dramática e de cornada à vista, fazem correr pelas bancadas um delírio contagioso, que turva o entendimento, excita os ânimos e dificulta a destrinça do bom e do mau. (…)
Conquistam as maiores ovações, vencem os mais difíceis adversários, arrebatam todos os prémios. Possuem o dom de ganhar tudo em toda a parte e sempre – toureiros de estirpe desportiva e garbo olímpico. (…)
Toureiros de base sólida, domínio pleno e ciência exacta.
O distintivo deste grupo é a lide. Lidar, numa acepção ampla, é tourear bem para matar bem.
O toureiro deve conhecer a condição, os defeitos e a qualidade do touro – o tipo da sua acometividade. Por isso acima de tudo, lidar significa analisar o touro. (…)
Na acção de lidar estão implícitos nada menos de três sentidos: um relacionado com a ideia de decomposição, para esclarecer; outro com a ideia de correcção, para melhorar, o terceiro com a ideia de resoluçãopara decidir sem hesitar. A lide é assim a guia e mestra do toureio posterior. (…)
Toureiros de talento maciço, força criadora e perpétua memória.
Neste grupo final, quantitativamente reduzido, mas de qualidade requintada, reúnem-se os toureiros que aportam à tauromaquia para anunciar outras teorias, outras concepções, outras fórmulas. Chegam com a missão de descobrir segredos nunca antes revelados, de extrair resultados novos, de ressuscitar as grandes verdades esquecidas.
Riscam do que está escrito tudo o que é superficial, inútil, fortuito ou aparente , para só deixar o fundamental e sério, porque primeiro está a dignidade do espectáculo, e porque ao touro não se deve mais do que necessita.
Nos toureiros desta linha encontram-se amalgados em justas proporções os princípios comuns que dão forma ao toureio: arte, ciência e valor. E porventura algo mais, cuja influência se não pode avaliar nem medir, esses elementos fluídos, caprichosos, imponderáveis, que presidem ao destino de tantas cousas humanas. (…)”
Estes trechos compõem um tema bem mais longo, publicado em Junho de 1955 no Jornal «Festa».
In, “O Touro e a Arte de Tourear”, Lisboa 1971