“As esperas de touros
Com a demolição da praça do Campo de Sant'Ana, acabaram em Lisboa, as saudosas esperas de touros. No tempo em que essa praça funcionava, não havia gaiolas para condução de gado bravo, nem este era transportado d'outra forma que não fosse a pé. Algumas vezes vieram desenjaulados para o Campo Pequeno, os curros destinados a este taurodromo, mas em nada se assemelhava essa condução de gado bravo, ás que em tempos idos foram as genuínas esperas, com as suas tentadoras e atraentes caracteristicas. Sem distinção de classes e categorias, toda a gente acorria com entusiasmo ao popular divertimento, que n'essa época — que não volta! — constituía a grande vida dos rap¬zes de todas as edades... e da nossa artística e hoje muito enfraquecida tauroma-quia. A condução do gado bravo para o Campo de Sant'Ana, tinha o seu inicio á terça-feira, quando os touros levantavam das suas lezí¬rias com destino a Frielas, onde descançavam até sexta-feira á noite, para no sábado de tarde seguirem das Marnotas, para o Largo do Campo Pequeno e ahi permaneciam, junto ao palácio Galveias, até á uma hora da madrugada, sendo pontualissima essa hora para a largada definitiva em direção aquela praça. Enquanto o gado descançava no Campo Pequeno, regurgitavam de aficionados as casas de pasto, desde Carriche até o Arco do Cego, sendo as mais preferidas a Nova Cintra, Patusca, José dos Santos, Quebra bilhas, Colete encarnado, António da Joana, etc., onde as guitarradas se faziam ouvir nos des¬cantes em que se destacavam os cantadores d'essa época : Emilia MidÕes, Cezaria, Maria José Formiga, Borboleta, Maria do Carmo, Manoel Serrano, Patusquinho, António dos Fósforos, José Um, Calcinhas, e outros. De entre os numerosos aficionados que nunca faltavam ás esperas, destacavam-se o Conde de Vimioso, Marquez de Castelo Melhor, D. Caetano de Bragança, D. Alexandre Vila Real, Avilezes, Galveias, Maniques, D. João de Menezes, Lobo da Silveira, D. Luiz do Rego, D. António Portugal, Carlos Relvas, Marquez de Belas, D. José de Melo e Castro, Visconde da Graça, Vitorino Froes, Alfredo Marreca, e outras grandes figuras da primeira sociedade. O tentador cortejo de touros e aficionados, tipóias e cavaleiros, era constituído da seguinte forma: A' frente e a distancia, alguns soldados de cavalaria da antiga Guarda Municipal; a seguir e de pampilho ao hombro, juntos dos campinos, alguns cavaleiros dos mais destemidos, á cabeça do gado, com o cabresto-guia á frente, circundando os touros, e na rectaguarda mais soldados de cavalaria, seguidos de muitos aficionados a cavalo e de uma aluvião interminável de trens guiados pêlos grandes batedores, José Maria dos Anéis, Gradil, Pescadinha, Gil, Roque Mulato, Cândido, Bitaculas, José Azeiteiro, Lavadinho, Carlos Bonito, José Gordo, Bemfica, Agostinho Careca, Ribeirinho, Cambrainha, Paço d'Arcos e outros, tendo sido o Pedro da Viuva, quem mais vezes ganhou a bandeirinha, ou fosse um lenço branco, colocado no pingalim do primeiro batedor que chegasse á praça. Esta pandemonia e arriscadissima viagem poeirenta, era feita em curto espaço de tem¬po, pela estrada do Arco do Cego, Calçada de Arroios, Rua de Arroios, Largo de Santa Barbara, Rua de Santa Barbara, Paço da Rainha e Campo de Sant'Ana. Uma vez o gado na praça, dividiam-se pelas bancadas, em grupos, os aficionados e cantadores, com os seus respectivos e suculentos farnéis — isto até de madrugada —enquanto na taberna do José do Borralho, em frente da praça, não havia mãos a medir... copos de bom carrascão para acompanhar as meias desfeitas de pescada ou bacalhau com grão, especialidade da casa. E assim terminava, sem a mais pequena nota discordante, o maior divertimento dos fidalgos e plebeus do tempo, em que toda a gente tinha, fatalmente, que gostar de touradas e em que a vida, comparada com o que é presentemente, constituía a maior das felicidades para todos em geral. Que saudades!”
In, “Touros, arte portugueza”, de José Pedro do Carmo, Lisboa 1920 (?)