LITERATURA TAURINA – “DA BARREIRA… 1943″, DE SARAIVA LIMA
Há sempre uma frase feita, pronta a cair do bico da pena, e que precisamos evitar a todo o custo.
Recear que a tinta se entorne sozinha…
JULIEN GREEN
O toureio, nunca é de mais repeti-lo —- mormente na presente ocasião em que o público de toiros anda desorientado, pela diversidade de opiniões que até ele chegam — é uma arte com princípios determinados, que constituem a sua própria essência. Pode evolucionar, pode revestir diversas características, mas no fundo tem regras que não podem ser postergadas.
Tourear é estar parado diante dos toiros, aguardar com calma a sua investida, aguentá-los, fazendo-os passar junto do corpo e, no momento próprio, dar-lhes a saída, marcando-lhes o caminho que o toureiro escolheu. £ se a tudo isso o artista puder acrescentar a determinação da velocidade, templando, toureia de verdade. Quem não fizer isso pode ser um toureiro como tantos, mas nunca uma figura.
O toureiro tem de ser valente, e a valentia é definida por Montes como sendo a qualidade de estar diante de um toiro com a mesma serenidade como se ele lá não estivesse. Mas a valentia deve demonstrar-se no momento oportuno, e aquele que intente fazer uma sorte sem que o toiro esteja numa situação devida para tal, não é valente, é apenas temerário.
E, nessa hipótese, acrescenta Montes, quem fizer isso só denota pouco conhecimento, e só por casualidade se livra da cornada.
O toureiro deve ser ágil, mas a agilidade não consiste em mover-se constantemente dum para o outro lado, de forma a que os pés nunca se fixem no solo, porque isso constitui um defeito muito grave e «es distintivo del mal torero», ensina Montes. A agilidade consiste em mover-se com ligeireza, mas parar e mudar de direcção com grande presteza. E esse dom conhece-se bem quando o toureiro, tendo o toiro em cima dele, sabe esquivar a cornada.
Por fim, a última — mas que é a primeira em importância —• qualidade do toureiro é o perfeito conhecimento das regras da sua arte. Quem tiver as duas qualidades indicadas em primeiro lugar poderá tourear com perfeição, se conhecer as regras do toureio.
E Montes é lapidar na sua síntese: «Por conseguiente, el conocimiento es la principal cualidad del buen torero; debe ser su guia en todas las suertes, sirviendole el valor para que ninguna le arredre y la ligereza para executarlas con seguridad y perfeccion».
Definidos assim os requisitos do bom toureiro, vejamos a que regras deve obedecer o seu trabalho.
É na faena de muleta que ele, hoje mais do que nunca, se revela.
Pode-se passar bem de capote, podem pôr-se bandarilhas com maior ou menor habilidade, mas só quem tourear bem de muleta pode ser um bom toureiro.
A faena de muleta deve ajustar-se — em face das condições do toiro, é claro •— a três regras.
Em primeiro lugar, deve ser feita à base da mão esquerda. A mão direita é destinada ao estoque, a muleta fica na esquerda. Os passes fundamentais — e perdoem os leitores a insistência — são o natural e o de peito, dados ambos com a mão esquerda. Os passes ajudados, em que ambas se juntam, e todos os outros mais ou menos vistosos, são passes de recurso. Isto não quer dizer que quem dá esses passes não seja toureiro. Mas para o ser tem de dar os outros. Ë que o natural e o de peito são a pedra de toque de todo o bom artista.
A faena de muleta deve ser ligada, e com os passes característicos, e não com aquelas trapaças, «de pitón a pitón», como se diz em Espanha. Isso nada representa, porque qualquer passe, seja ele fundamental ou de recurso, deve ter princípio, meio e fim.
Por último, o trabalho de muleta deve ser executado, sempre que isso seja possível, no mesmo sítio. O verdadeiro artista deve saber onde o toiro se presta a maior luzimento, e toureá-lo de preferência aí. E nunca andar atrás do animal, como que a pedir-lhe que se deixe tourear.
É claro que nem todos os toiros se prestam a faenas em que o espada atinja a perfeição. Mas quanto mais se aproximar desse ideal’—e o óptimo é muitas vezes inimigo do bom — maior é o artista. E, sobretudo, o bom toureiro deve tirar do animal que tem na sua frente o máximo rendimento. E ir tourear para junto dos currais, como há dias vimos, um toiro que investia suavemente, e que por isso se prestava a uma grande faena, se ela fosse feita noutros terrenos, denota uma de duas coisas: que o artista não se apercebeu do valor do seu antagonista, ou que não tinha garras para fazer «Ia faena cumbre».
Ë que os toiros devem ser toureados conforme as suas condições. Se são mansos, dão-se-lhes as tábuas; se são bravos, toureiam-se no meio da praça. Isto pelo que respeita à muleta.
O toureio de capa, hoje que caiu em desuso a navarra, tem uma sorte fundamental, a verónica. E é fundamental porque na verónica se pode parar, mandar e templar, o que não sucede com outros passes de capote. E a verónica é tanto mais perfeita quanto mais parado o artista estiver, movendo apenas os antebraços, ou até só os pulsos, quanto mais o toureiro indicar ao toiro o seu caminho, carregando a sorte com a perna contrária àquela de onde investe o toiro, e quanto mais suave e demorada for. Quem não tourear bem à verónica não é um grande toureiro com o capote. Podem fazer-se coisas bonitas com este, desde esse quite genial da mariposa, inventado por Marcial Lalanda, até ao passe de frente por detrás, que Rodolfo Gaona — que com Armilita foram os dois únicos grandes toureiros que o México nos mandou — tanto prodigalizou.
Mas é na verónica, quando ela é cingida, parada e suave, que se vê o verdadeiro artista.
O paron— esse passe que se dá com os pés juntos, deixando passar o toiro muito cingido, é vistoso, mas de valor precário. Nele o toureiro limita-se a aproveitar a marcha do toiro, sem lha determinar, isto é, sem mandar.
Todos estes passes podem ser dados depois do toureiro tourear bem à verónica. Mas dá-los, sem a executar correctamente, antes deles, é sintoma de que o artista é pouco profundo.
Finalmente, a sorte de bandarílhas. Acho natural que o público português aprecie esta sorte, à falta da de varas e da estocada. Mas é a mais fácil de executar. Há até em Espanha quem proponha a sua supressão, por motivos que um dia apreciarei.
Todavia, na sorte de bandarílhas também pode haver grandes toureiros. Mas a sua precisão só se pode avaliar no momento da reunião. Se o toureiro crava as bandarílhas dentro da córnea do toiro, bem está. Mas se as crava depois da cabeça passada, a sorte perde todo o seu valor. O público deve ver o tercio de bandarilhas não pêlos seus resultados, mas pela forma por que elas forem crava» das, deixando chegar o toiro, entrando-lhe de frente, levantando bem os braços e cravando-as «en su sitio».
É esta a razão por que as bandarilhas curtas carecem de valor. Nelas o toureiro tem de executar a sorte, já com a cabeça passada e portanto fora do alcance, visto não ter espaço material para as cravar como mandam as regras.
Creio que estas noções elementares, tiradas dos imortais princípios, são mais do que oportunas no momento que passa.
Se não devemos incensar qualquer artista, sem motivo justificado, é justo, todavia, que lhe reconheçamos o seu valor. Se ele faz tudo de quanto é capaz para. nos agradar, é merecedor dos nossos entusiásticos aplausos. Mas é preciso que a nossa admiração, e a gratidão por ele procurar satisfazer–nos, se não transformem em idolatria. Ê que esta é, na mor parte das vezes, consequência da falta de conhecimentos, melhor dizendo, da ignorância dos verdadeiros princípios.
E um público que este ano já viu tourear Ortega, Belmonte, Pepe Luís e Bienvenida, e que todos os dias pode aplaudir Simão e Núncio, não tem o direito de se deixar arrastar, aplaudindo o que de oiro só tem a cor.
E que, assim, os aplausos que dirige àqueles grandes artistas carecem de valor.
E faz-se uma figura muito triste…
In, “Da Barreira... 1943”, de Saraiva Lima